A arte urbana como expressão do direito visual à cidade
“Não busque luxo em meio ao lixo da cidade morta
Pra se livrar dos bichos da cidade morta
Pra se livrar dos vícios da cidade”.
Pra se livrar dos bichos da cidade morta
Pra se livrar dos vícios da cidade”.
Baiana System- Terapia
Como primeiro passo desse rolê (gíria utilizada entre os pichadores para se referir a prática de sair pela cidade para pichar) tomemos as ruas da cidade como caminho de percepções. A cidade – com sua pluralidade de signos e significados, seu cotidiano de encontros e de violência, seus valores e preços, e, mais importante, com seus sujeitos, representa o espaço por excelência da vida e da produção dos direitos.
Todavia, há que se admitir que tamanha circulação de interesses faz do espaço público lugar do conflito, da exposição de diferenças. Como reação a essas contradições, insurge-se nas cidades a arte urbana (grafite, pichação, lambe-lambe, tags, adesivos, estêncil, o grapixo, o bombing, as frases de conteúdo poético e político etc) manifestada por um conjunto de valores, práticas e modos de vida formadores de uma identidade. Nesse contexto, a inscrição do indivíduo na cidade, em sentido político, se dá justamente pela realização de suas culturas.
Admitir as manifestações dos sujeitos sociais na cidade, as ocupações, os usos, as formas de expressão cultural, para além das formalizações, é entender e valorizar o uso e democratização da cidade, à luz do Texto Constitucional que preleciona ser dever do Estado a garantia do pleno exercício dos direitos culturais por todos, apoiando e incentivando a valorização e difusão de manifestações culturais, conforme seu artigo 215.
É necessário reconhecer que as ruas são espaços constantes de construção de novos direitos. Ouvir o saber das ruas através da arte urbana é dar visibilidade e legitimidade às formas de vivência e expressão na cidade que consistem em efetiva participação política dos sujeitos na formação do patrimônio cultural urbano.
A fonte primeira de manifestação do Direito são as inter-relações sociais. As construções e práticas legais, que se pretendam justas e democráticas, não podem afastar-se da compreensão dos novos movimentos que ocupam as cidades. Insurgem-se da prática social a reivindicação de direitos novos, muitas vezes, em contraposição ao ordenamento jurídico posto.
A criminalização da arte urbana, sob a justificativa de uma suposta necessidade de ordem – cujos atributos são higiene, simetria e beleza dos espaços –, representa exemplo concreto desta conjuntura. Como resistência, mas, sobretudo, como sobrevivência a este modelo segregacionista de urbanização, a arte urbana avançam sob o tecido das cidades, imprimindo suas identidades por meio de uma linguagem própria e contribuindo para a ressignificação desses territórios.
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A mesma cidade que nega a arte urbana, sob um falso pretexto de limpeza visual e de proteção ambiental, acolhe sem restrições o fluxo insistente dos signos produzidos pela publicidade. Na visão da cidade como bem de consumo, até mesmo a linguagem e a estética tornam-se valor de troca, pois é importante que se desperte desejos de consumidor.
É preciso reconhecer a arte urbana como expressão legítima da re-apropriação e ocupação das cidades pelas minorias, sendo assim, manifestação de um Direito Visual à Cidade. É a consolidação da representação artística e cultural da cidade, manifestação essa, em grande parte, de cunho identitário, estético e político de determinado grupo, especialmente jovens vindos da periferia.
Essa política repressiva e criminalizatória destinada aos movimentos protagonizados pela juventude periférica tem provocado um cenário preocupante de violência, produzido, principalmente, pelas instituições de controle penal – seja pela sua ação comissiva, seja por omissão. Segundo o Mapa da Violência de 2014, dos 56 mil homicídios que ocorrem por ano no Brasil, mais da metade são entre os jovens e, dos que morrem, 77% são negros e moradores da periferia. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou esses casos de violência contra jovens negros e pobres no Brasil concluiu que essa parcela da população vem sendo vítima de uma espécie de “genocídio simbólico”.
O apagamento das identidades visuais expressas nas artes urbanas constitui uma violência e uma ausência de diálogo com a sociedade, como recentemente vem ocorrendo na cidade de São Paulo, sob a gestão de João Dória (PSDB): ao mandar apagar grafites, promove-se uma desumanização da cidade, retirando aspectos que compõem o cotidiano urbano, apaga-se a própria cidade. O caráter higienista da “acinzentação” da cidade é nítido até mesmo no batismo do projeto: “Cidade Linda”. Em 2008, o documentário “Cidade Cinza” (título que parece se adequar melhor ao projeto de Dória), abordou a luta de artistas urbanos contra as gestões que insistiam em transformar as artes urbanas em grandes painéis cinzas; em 2017, a cena se repete. O que se quer apagar que emana dos muros tem classe, raça e endereço, os marginalizados da cidade que se propõe a ser (ainda) mais cinza – apaga-se os muros tingidos de povo, marginaliza-se e aprofunda-se o genocídio contra essa população.
Essa violência institucional é elemento constante nas letras das músicas (rap, funk, hip hop) e nas pichações, grafites, estêncil, grapixo, lambe-lambe, tornando tais manifestações, além de um fenômeno cultural urbano e uma referência estética na paisagem plural das cidades, verdadeiros instrumentos de denúncia. Porém, seu desdobramento perverso é a exclusão violenta dos jovens da periferia através da criminalização de suas práticas.
Embora nem sempre a arte urbana carregue conteúdo político explícito, a imagética por elas produzida já é por si só uma forma de dar visibilidade às desigualdades sociais. Contra o tédio e os processos de exclusão da vida cotidiana, a partir de elementos ideológicos e estéticos, os jovens não apenas instituem uma subcultura do desvio, mas uma verdadeira contracultura, colocando-se como crítica aos valores formais.
O direito visual à cidade é a síntese totalizante da convergência de múltiplos fluxos de expressão urbana. O direito de aparecer na cidade é um direito de todos os cidadãos e ramifica-se nos direitos de estar e ser, no direito de ir e vir, no direito à autenticidade e à expressão. Desmontar os padrões estéticos de nosso tempo é, neste momento, a mais profunda atitude política contra o autoritarismo cotidiano e espetacular que alimenta a indústria cultural da fachada.
A Cultura de Rua, anunciada pelas pichações, grafites, adesivos, lambe-lambe, tags, estênceis, é a linguagem de resistência das juventudes periféricas. É por meio dela que falam, que se tornam visíveis e presentes para a cidade. É assim que muitas verdades da vida urbana se expressam em seus muros, e a maior de todas elas é a urgência de pensar numa cidade para se viver.
A cidade é o lugar da produção do bem comum, de sentimentos e anseios que só se concretizam na diversidade que a vida urbana oferece. O Direito à Cidade nada mais é do que o direito à vida urbana, ao uso pleno dos seus caminhos. Através da arte, da disputa das narrativas, os sujeitos coletivos enfrentam o urbanismo – criador de uma cidade legal e de outra marginal –, na busca por identidade, autonomia, participação e direitos.
“(…) que faço parte dessa gente que pensa que a rua é a parte principal da cidade.” É com o auxílio das palavras lúcidas e poéticas de Leminski que encerramos este rolê pela cidade de direitos e por seus muros de escritas marginais. No percurso do Direito Visual à Cidade, da periferia ao centro, as escritas marginais urbanas provocam variadas percepções (positivas e negativas) aos seus espectadores, e a mais clara e sincera de todas elas é a compreensão de que o muro pode pertencer à rua, ao lado de fora, ao meio ambiente urbano, e não só ao dono da propriedade. O direito à cidade, sobretudo o direito visual à cidade, é também o direito à livre expressão na cidade.
Carla Mariani é Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Integrante do NAJA – Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa
Gilson Santiago é Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Membro do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Integrante do NAJA – Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa
Claudio Carvalho é Doutor em Desenvolvimento Regional e Urbano pela Universidade Salvador. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos. Bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté. Professor adjunto em Direito Ambiental e Urbano e Agrário da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Membro do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. Integrante do NAJA – Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa.
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