Crítica: Uma
Bienal de São Paulo congelada no silêncio das formas
A
33ª edição do evento perdeu a oportunidade de ser o espelho de um Brasil ferido
Stargazer
II: com curadoria da pintora sueca Mamma Andersson,
exposição foi um dos bons momentos da Bienal - Edilson Dantas / Agência
O GloboRIO
— Quando anunciado, o projeto para a 33ª Bienal de São Paulo, concebido pelo
curador Gabriel Pérez-Barreiro, soou interessante e necessário: incluir os
artistas e o público na sua concepção e montagem. Realizar uma Bienal que
evidenciasse sua escassez de recursos e até mesmo seus vícios poderia ser uma
excelente oportunidade para transformar a exposição no espelho para um Brasil
ferido, ameaçado em sua liberdade e em sua vida cultural. O que se vê no
Ibirapuera, no entanto, é uma mostra que permanece congelada na beleza e no
silêncio das formas.Não
há nada de errado com a beleza. Não há nada de errado com o silêncio. Uma
exposição, qualquer que seja, não precisa estender faixas ou entoar palavras de
ordem para estar aberta ao espírito de sua época. Em 2010, Agnaldo Farias e
Moacir dos Anjos partiram de um verso de Jorge de Lima (“Há sempre um copo de
mar para um homem navegar”) para falar de política das mais variadas formas,
inclusive daquelas mais belas.Em
2012, Luis Pérez-Oramas fez da 30ª Bienal uma exposição sutil, que se revelou
extremamente transgressora a partir de um gesto simples: transformar o artista
esquizofrênico Arthur Bispo do Rosário em seu centro irradiador poético,
questionando hierarquias e sistemas de validação do meio de arte. Em 2016, a
32a Bienal, a cargo de Jochen Voz, radicalizou as relações entre arte e vida ao
fazer da mostra literalmente um alimento: a obra do artista Jorge Menna
Barreto, “Restauro”, era o único restaurante e café do prédio, e oferecia
exclusivamente comida orgânica e vegetariana, muitas vezes preparada com espécies
recolhidas no IbirapueraSe
na história recente da exposição chamam a atenção a ousadia de transbordamentos
muito heterogêneos, nesta Bienal a tônica é uma contenção que é quase timidez.
Esta edição tira seu título, “Afinidades afetivas”, de duas referências: o
romance “Afinidades eletivas” (1809), de Goethe, e a tese “Da natureza afetiva
da obra de arte” (1949), de Mário Pedrosa.Goethe
mostra como a vida tediosa de um casal aristocrata é perturbada pela chegada de
dois visitantes; já Pedrosa, que acreditava na crítica como militância
política, vai anunciar a ideia de “natureza afetiva” pensando no poder
mobilizador da obra de arte. São dois textos que concebem afeto como
perturbação e transformação. E é exatamente isso o que falta à Bienal, uma bela
adormecida que não desperta para o debate e o conflito.
Obra
de Claudia Fontes é um dos projetos individuais da mostra "Afinidades
afetivas" - Edilson Dantas / Agência O GloboA
partir do conceito químico de “afinidade eletiva”, que norteia a obra de
Goethe, Pérez-Barreiro convidou sete artistas para fazerem a curadoria de
exposições com obras de suas escolhas, com a única condição de que se
incluíssem nelas. O próprio curador selecionou ainda 12 projetos individuais de
artistas brasileiros e estrangeiros.Isoladamente,
há obras e mostras interessantes, mas o conjunto não forma um arquipélago de
ilhas que se intercomunicam, e sim uma sucessão de artistas e obras que parecem
ser planetas muito distantes um do outro. A falta de diálogo entre as partes
faz com que perca de vista a “afinidade eletiva” fundamental: a empatia na
direção do público.Na
análise da mostra ponto a ponto, há, no entanto, trabalhos que valem a ida ao
Ibirapuera, a começar pelo pequeno núcleo histórico dedicado a Friedrich Fröbel
(1782-1852), alemão que foi o inventor do conceito de “Kindergarten”, que
derivou no “Jardim de infância” que temos hoje nas escolas. Parte da curadoria
realizada pelo artista espanhol Antonio Ballester Moreno (“Sentido/comum”), a
sala dedicada a Fröbel procura mostrar como seus jogos e livros educativos
voltados para crianças pré-alfabetização foram uma das bases para as
transgressões das vanguardas modernas.Afinal,
artistas como Kandinsky e Paul Klee foram ao “Kindergarten” e, a partir do
método de Fröbel, entenderam as possibilidades de transgressão contidas na cor
e na forma. Talvez resida neste pequeno e extremamente significativo conjunto
de trabalhos um caminho que a Bienal poderia ter radicalizado como concepção
geral da mostra – o lúdico e a infância como pontos de partida para
desobediências e novas significações. Mas não há conversa evidente entre essa
sala e outros bons trabalhos selecionados por Moreno e o restante do Pavilhão.Outro
bom momento é a coletiva “Stargazer II”, com curadoria da pintora sueca Mamma
Andersson. Ela seleciona artistas e obras de arte que teriam funcionado como um
inventário de imagens para a formação de sua obra, entre eles seis conterrâneos
de diferentes épocas e ícones russos. O segmento também inclui uma joia rara: o
filme de animação “A vingança do cinematógrafo” (1912). Feito por um pioneiro
da imagem em movimento, o polonês Ladislas Starevich (1882-1965), ele mostra baratas
descobrindo as maravilhas e as agruras do cinema.
"Rodtchenko",
de Waltercio Caldas. Obra da mostra “Os aparecimentos” - Vicente de
Mello / DivulgaçãoWaltercio
Caldas assina a curadoria da mostra “Os aparecimentos”. O conjunto evidencia o
processo de formação do olhar de Waltercio, sobretudo pela inclusão de
brasileiros como Goeldi e Sergio Camargo. Mas a excelência de alguns trabalhos
- do próprio artista-curador e de nomes como Bruce Nauman, Blaise Cendras, Gego
e Armando Reverón - é perturbada pela expografia. O piso foi forrado por um
questionável carpete marrom e a luz da sala é feita com lâmpadas frias, além de
as obras terem pouco espaço entre uma e outra, o que dificulta sua fruição.Muito
mais grave é o caminho tomado por Sofia Borges em sua coletiva “A infinita
história das coisas ou o fim da tragédia do um”, na qual apresenta obras de
Tunga, Leda Catunda e Sarah Lucas presas ou em frente a um fundo feito por
teatrais cortinas de veludo molhado, em cores variadas.Nem
a iconoclastia e a atmosfera de um barroco contemporâneo que permeiam os
trabalhos selecionados poderiam justificar esta escolha cenográfica, que é
quase uma ofensa – às obras e à percepção do visitante. Nos raros momentos em
que esta mostra dentro da mostra encontra respiro visual fora das cortinas, é
possível perceber de forma ainda mais contundente o erro do cenário, já que os
bons diálogos encontram possibilidades de existência.Um
dos mais fortes e felizes ocorre entre uma pintura-objeto monumental de
Catunda, feita em tons de dourado, e um pequeno quadro nos mesmos tons do
artista do inconsciente Artur Amora, revelado por Nise da Silveira.
"Te
quiero", cobertor bordado a mão de Feliciano Centurion -
Divulgação / Feliciano CenturionNos
projetos individuais, chamam a atenção as salas dedicadas a dois artistas
falecidos: o paraguaio radicado na Argentina Feliciano Centurión (1962-1996) e
a goiana Lucia Nogueira (1950-1998), ainda pouco reconhecida e estudada no
Brasil por ter passado a vida em Londres.Mesmo
que Centurión parta da delicadeza do bordado para reinventar uma iconografia
guarani e Nogueira do rearranjo de materiais pré-existentes para evidenciar o
risco e a tensão, ambos são autores de objetos turbulentos. A exemplo do que aconteceria
com o “Jardim de infância” de Fröbel, esta dupla de artistas criadores de
objetos tão indisciplinados poderia ser propulsora de uma Bienal que se propôs
a ressaltar a transformação afetiva das formas. Outra individual bem—sucedida é
a de Nelson Félix, que apresenta obra ainda em processo na qual foi a pontos
extremos do planeta, como o Alasca e o Ushuaia, para pensar uma reinvenção da
paisagem. Os cáctus que crescem na direção de espetos de ferro são uma dupla
raridade no Ibirapuera: abrem-se para uma interlocução com nossos tempos
pontiagudos e dialogam com a arquitetura de Oscar Niemeyer. Desafiador em usa
onipresença, o prédio da Bienal foi explorado como campo de criação e conflito
por outras edições. Nesta, reina soberano como na desenergizada “Bienal do
vazio” (28ª edição, 2008): sequer seu vão central foi ocupado. Não seria
exagero dizer que, visualmente, Niemeyer é a presença mais marcante da mostra.De
um modo geral, obras e exposições foram pensadas como núcleos ensimesmados,
montados de costas para o lugar que os abriga e para a vida fora do prédio, que
começa no parque. Também de um modo geral, a Bienal de Pérez-Barreiros — que é
diretor de uma importante coleção privada em Nova York e Caracas, a de Patricia
Phelps de Cisneros — apresenta trabalhos que poderiam ser vistos em qualquer
galeria, e esta simplicidade, que poderia ser acolhimento, dá ao visitante uma
sensação de trivialidade e domesticação. Se é adormecida, essa bela revela-se
ainda, em alguns momentos, recatada e do lar.
*Daniela
Name é crítica de arte.
Nome: Luísa Antunes Resende
Postagem de artes
Notícia: https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/critica-uma-bienal-de-sao-paulo-congelada-no-silencio-das-formas-23073292
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